Por medo de retaliações, poucos profissionais prestam queixa de agressões sofridas nas diligências e, por isso mesmo, não existem dados oficiais sobre esta realidade
Categoria alega que, apesar do direito garantido de escolta policial, o processo de liberação junto à PM é burocrático e raramente adequado. Foto: João Veloso/Esp. DP
Há uma semana, o oficial de justiça Victor Evangelista cumpria uma diligência na zona rural de Vitória de Santo Antão, na Mata Norte, quando foi abordado por dois assaltantes. “Eu estava num mototáxi, numa estrada de terra a caminho de um sítio para cumprir uma diligência. Passando por uma curva, havia dois indivíduos parados. Um numa moto e outro ao lado. O que estava em pé, já estava com uma espingarda apontada para gente”, lembra. Víctor não chegou a ser agredido fisicamente, mas diz que essa sensação de vulnerabilidade é uma constante no seu dia a dia. “Na maioria das vezes, nossa cobertura é uma caneta para uma certidão que você vai entregar depois de ter vivido a situação de risco”, lamenta.
Os oficiais de justiça são a representação dos juízes nas ruas, cabendo a eles a função de executar, pessoalmente, as decisões dos magistrados. Porém, esse contato com as partes nem sempre se dá de maneira tranquila. Assaltos, ameaças, xingamentos, agressões físicas e até mesmo a morte assombram a rotina da categoria, que busca alternativas para garantir a segurança de seus profissionais. Uma das queixas mais comuns é a exposição constante a situações de risco. Principalmente, entre os que atuam em localidades onde o índice de violência é mais alto ou em regiões mais isoladas.
Depois de ver o réu trancar a porta da casa dele com cadeado, abrir o zíper dizendo que convivia com estupradores e pedófilos, e que sabia o que "gente da laia" dela merecia, M.C. garante que nunca mais repetirá o erro. Foto: João Veloso/Esp. DP
No episódio que envolveu o oficial Victor Evangelista, a tensão cresceu quando um dos assaltantes percebeu seu distintivo: “Expliquei que eu não era policial, que estava desarmado e que só portava documentos. Ele pediu para eu deitar no chão, colocou a arma na minha cabeça e me revistou, subtraindo óculos, relógio e o dinheiro da carteira. Além da moto do mototaxista”, recorda. Experiência de medo e angústia que a oficiala M.C., há seis anos no desempenho da função, também conhece.
Lição traumática
M.C diz ter enfrentado um número de incidentes maior do que gostaria, mas uma diligência feita numa comunidade no bairro de Afogados deixou uma lição preciosa. “O nome de uma senhora constava como representante legal do ‘autor do fato’ daquele mandado e cheguei ao endereço perguntando por ela”. O que M.C. não sabia é que o homem que a recebera na porta era justamente o réu. “Ele disse que eu o estava constrangendo por falar do processo no meio da rua e me convidou para entrar no imóvel. Quando entrei, ele simplesmente passou o cadeado na porta”.
Apesar de tomada pelo medo, a oficiala tentou manter a calma e passou a argumentar com o homem. “Ele não queria saber. Disse que eu estava ‘mancomunada’ com a outra parte. Ele estava usando um casaco sem blusa por baixo e ficou me ameaçando, abrindo o zíper e dizendo que convivia com estupradores e pedófilos e que sabia o que ‘gente da minha laia’ merecia”, lembra. Ciente de tudo o que poderia acontecer a partir dali, M.C. diz que não consegue lembrar quanto tempo passou para convencer o suspeito a abrir a porta. “Ele perguntava o tempo todo se eu estava com medo dele e apesar de me tremer todinha, dizia que não. Eu falei que ia pegar minha identificação profissional e retornaria, e aí, quando ele finalmente abriu a porta, corri para o carro e fui embora”.
O presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça de Pernambuco (Sindojus-PE), Marco Antônio Albuquerque, conta que situações como as relatadas acima são mais comuns do que apontam os números. O medo de retaliação, explica, faz com que muitos oficiais decidam não prestar queixa, atrapalhando um levantamento preciso sobre esta realidade. “Temos uma série de mandados a cumprir e seria impossível lembrar todas as pessoas que prendemos. Eu, certamente, já prendi mais de 200”, relata. “O réu com certeza vai lembrar e vai carregar aquela raiva de mim para o resto da vida. Ele não acha que foi o erro dele que o levou à prisão. Para essas pessoas, foi o oficial de justiça que as afastaram do lar. O ônus da nossa profissão é carregar isso para as nossas vidas. Vai muito além de nossas carreiras, por isso muitos têm medo de relatar as agressões.”
Demandas não atendidas
Os sindicatos dos oficiais de justiça vêm discutindo meios de diminuir os riscos enfrentados pelos profissionais diariamente em todo país. Na pauta, há questões como o direito ao porte de arma e ao acesso a equipamentos de segurança, como coletes à prova de bala. Além disso, os oficiais relatam dificuldades no processo de solicitação de escolta policial para algumas diligências.
Presidente do Sindojus-PE, Marco Antônio (D) diz que entre as principais pautas da categoria estão o direito ao porte de arma e ao acesso a equipamentos de segurança. Foto: Cortesia
Existem exceções quanto ao porte de arma. Depois de longos processos na justiça, os profissionais da categoria que atuam em Alagoas, Tocantins e Pará foram autorizados a andar armados. Além destes estados, a concessão depende da avaliação de cada superintendente da Polícia Federal. A questão é que o estatuto do desarmamento não inclui os oficiais de justiça no hall dos ofícios onde o porte é um direito. E esta é a principal demanda dos sindicatos atualmente. “Não é compreensível a gente não ter direito ao porte de arma exercendo esta função. Há vários casos que comprovam que nosso ofício traz repercussões para a segurança no plano pessoal. Se os juízes, que decidem as sentenças, têm direito, não faz sentido que nós, que as executamos, não”, justifica o presidente do Sindojus-PE, Marco Antônio Albuquerque.
Marco Antônio lembra ainda que antes da implementação do estatuto, os oficiais de justiça do Estado tinham direito ao porte de arma e que desde então, a categoria não conseguiu novas autorizações. O chefe de comunicação da PF em Pernambuco, Giovani Santoro, explicou que pela legislação atual não há como contemplar toda a categoria com o porte. “Como não há a designação no estatuto para os oficiais de justiça, cada profissional precisaria dar entrada no processo para comprovar que sua rotina coloca sua vida em risco diariamente.” Santoro, no entanto, confirmou que apesar de algumas solicitações, nenhum oficial teve a autorização para andar armado concedida em Pernambuco.
É preciso se preparar para o inesperado
Além da demanda pelo porte de arma, os oficiais de justiça têm proposto alternativas para diminuir os riscos das diligências, como a realização de cursos de defesa pessoal e procedimentos na abordagem das partes. Através de sua assessoria, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) confirmou o recebimento da solicitação da categoria por cursos que os ajudem nas diligências. Além disso, revelou que já foi feito contato com a Polícia Militar no intuito de firmar parceria para a realização destes cursos ainda em 2016.
Outra queixa comum da categoria é sobre o direito garantido de escolta policial. Segundo Marco Antônio Albuquerque, a compreensão da Polícia Militar sobre o que diz a lei nem sempre é adequada. “Se a gente ligar para a polícia hoje, a orientação do CIODS em 90% das vezes é que o profissional, por ser oficial de justiça, deve retornar ao fórum, solicitar ao juiz um ofício de reforço policial, se dirigir a um quartel, agendar um dia para a diligência e só aí, fazer a diligência. Isso funciona bem quando a gente consegue prever que a diligência vai trazer risco. Mas num perigo imediato, como fazer isso?”, reclama o presidente do sindicato.
A PM reiterou por nota a existência do procedimento de solicitação de apoio policial para as diligências. Por outro lado, a assessoria disse que a instituição não reconhece as denúncias de que estaria sendo negado aos oficiais o socorro em casos de urgência.
ENTREVISTA/ IVO WANDARK
“Quero ver quem se defende contra uma foice com uma caneta”
Ivo Wandark pleiteia a aposentadoria por invalidez depois de ser atacado com uma foice em uma diligência. Foto: Cortesia
Em 9 de setembro de 2014, o oficial de justiça Ivo Wandark saiu para cumprir a diligência que mudaria sua vida. Nem com toda a experiência acumulada durante os 28 anos de carreira - quase que integralmente cumprida no município de Poção, Agreste do estado - ele poderia imaginar que seria recebido a golpes de foice naquela manhã. A agressão deixou marcas bem mais profundas que as cicatrizes em sua perna e cabeça. Durante a entrevista que concedeu ao Diario, por vezes não conseguiu conter a emoção enquanto discorria sobre o impacto daquele evento em sua vida.
Sei que não é fácil para você, mas poderíamos voltar ao dia da agressão?
Tudo bem. Recebi um mandado da Lei Maria da Penha - que demanda certa urgência. No outro dia de manhã, por volta das 6h, me dirigi ao Sítio Areia Grande, uma comunidade rural do município de Poção. Primeiramente me dirigi à casa dos pais do indiciado, onde sua mãe disse que ele estava na casa dele, provavelmente dormindo. Eu já tinha intimado ele outras vezes e nunca tinha tido problema. Quando cheguei lá, bati na porta, chamei e em pouco tempo ele perguntou quem era. Me identifiquei e já desci da moto com o mandado na mão para ser mais rápido. Quando me virei, ele já tinha aberto a porta e estava com uma foice na mão. Só senti a pancada na perna esquerda. Caí no chão e tentei me defender com uma bolsa de couro, mas ele ainda me acertou duas vezes no crânio. Aí eu desmaiei. Quando retornei, só escutei a mãe dele gritando: “você matou o rapaz”. Foi quando comecei a gritar por socorro e pessoas que passavam ali perto vieram me socorrer.
E o agressor?
Fugiu, mas a polícia fez um cerco para impedir que ele fugisse para a Paraíba. Quando ele voltou para pegar roupas, a polícia estava à espreita e efetuou a prisão. Atualmente, está no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá(HCTP) porque o médico emitiu um laudo de esquizofrenia.
Como você se sente em relação a isso?
Eu tenho minhas dúvidas porque um cara que faz o que ele fez e foge tem uma lucidez. Ele tinha problemas na hora de me atacar, mas na hora de arcar com as consequências, decidiu fugir. Isso é estranho. No depoimento, ele disse que me atacou porque achava que era um ladrão. Procurar uma desculpa não é coisa de gente que tem problema mental. Mas prefiro acreditar e torço para que ele seja louco de verdade. Pra mim, seria melhor saber que foi um ato de loucura e não de maldade. Espero que não tenha sido só a maldade humana.
E o impacto desse episódio em sua vida?
É uma coisa muito difícil. Ainda carrego as sequelas. Não tenho mais o mesmo equilíbrio para andar. Sempre andei de moto, sempre gostei, e hoje não consigo mais. Meu cérebro não consegue mandar o comando para o pé esquerdo. Tenho quatro dedos dormentes que sempre me lembram o que aconteceu e realmente é muito difícil ficar lembrando. Atrapalha muito a rotina. Alguns dias são mais difíceis e não consigo fazer nada. Tenho 50 anos de idade e não consigo aproveitar a vida como deveria. Tenho dificuldade para vestir uma roupa, calçar um sapato e até para me locomover. Aí vem aquela sensação de impotência, de saber que eu não pude fazer nada. A gente não pode nem se defender desde que a categoria perdeu o direito ao porte de arma. Agora é só com uma caneta na mão. Quero ver quem se defende contra uma foice com uma caneta.
E como você lida com isso tudo?
Eu fiz mais de um ano de terapia e vou tentando tocar o barco, tentar esquecer. A gente fica realmente marcado. A situação do oficial de justiça no Brasil é de risco constante. Quando a gente mal espera, acontece a agressão. Em 28 anos, nunca tinha passado por nada parecido. Já cumpri mandado de busca e apreensão que tinha tudo pra dar errado e deu tudo certo. Eu só quero superar essa questão psicológica e tocar o barco. Viver minha vida.
InfoJus BRASIL
Fonte: Diário de Pernambuco